sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Jogar o jogo — ou sobre traduzir: entrevista com Paulo Henriques Britto

por André Luiz de Freitas Dias


Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951.  Poeta, contista, ensaísta, professor e um dos principais tradutores brasileiros da língua inglesa, formou-se em português e inglês pela PUC-Rio. É professor de tradução, criação literária e literatura brasileira na PUC-Rio, onde também defendeu mestrado em língua portuguesa. Em 2002, recebeu o título de Notório Saber na mesma instituição. Morou nos Estados Unidos em dois períodos, no começo dos anos 1960, ainda menino, e no começo dos anos 1970, quando estudou cinema em San Francisco. Como poeta, estreou em 1982, com Liturgia da matéria. Depois, vieram os volumes de poesia Mínima lírica (1989), Trovar claro (Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Fundação Biblioteca Nacional, 1997), Macau (Prêmio Portugal Telecom, 2004), Tarde (2007) e Formas do Nada (2012). Publicou também os contos de Paraísos artificiais (2004) e Eu quero é botar meu bloco na rua (2009), sobre a música de Sérgio Sampaio. Ainda em 2012, publicou o livro A tradução literária. Já traduziu cerca de cem livros, entre eles volumes de poesia de Byron, Elizabeth Bishop e Wallace Stevens, e romances de William Faulkner (O som e a fúria). Recebeu o Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional (1995) pela tradução de A mecânica das águas (Companhia das Letras), de E. L. Doctorow.

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......A primeira vez que vi você fora do livro, foi em uma aula inaugural na UFJF. Ali, de muitos modos, já mostrava um circuito de opiniões muito diversas sobre tradução e poesia; também um modo de enxergar as funções dessas matérias, tanto na prática escrita [criativa, tradutória] quanto na posição de professor. Nessa aula inaugural, você dizia ter começado a traduzir, do português para o inglês, poemas de Fernando Pessoa e as letras dos músicos Tropicalistas, especialmente Caetano, para mostrar aos amigos nos Estados Unidos. Poderia falar um pouco mais desse período e, ao voltar para o Brasil, como se deu sua entrada profissional no campo da tradução?

......Fui para a Califórnia com o objetivo oficial de estudar cinema, mas, na verdade, era mais um pretexto para ir embora do Brasil, num momento — 1972 — em que vivíamos um clima irrespirável, pós-AI5; no fundo eu pensava em me radicar nos Estados Unidos, imaginando que, por falar inglês desde a infância e ter conhecimento prévio da cultura norteamericana, eu me aclimataria sem problemas. Nada ocorreu como o previsto; ainda que eu frequentasse círculos contraculturais semelhantes aos que conhecia no Rio, e fizesse algumas amizades sólidas, eu me sentia um peixe fora d’água, tinha saudades do Rio, da língua portuguesa, da família, dos amigos, de tudo. E embora eu estudasse cinema, meu interesse cada vez mais se concentrava na literatura e na linguística. Assim, depois de seis meses de Los Angeles e um ano de San Francisco, o banzo me trouxe de volta ao Brasil. Aprendi alguma coisa de cinema, sem dúvida; o mais importante, porém, foi que atualizei meu inglês, descobri a gramática gerativa — voltei para o Rio decidido a me tornar linguista —, travei contato com a obra de vários escritores, inclusive um poeta que veio a se tornar importante para a minha formação, Wallace Stevens, e também adquiri alguma prática na tradução literária — e não só por traduzir poemas e letras de canções do Brasil para mostrar aos amigos americanos. Como eu pretendia ficar nos Estados Unidos, comecei a escrever um livro de contos em inglês, e, com a volta ao Brasil, tive que traduzir o que já havia escrito para o português.
......Quando voltei para o Rio em caráter definitivo, em meados de 1973, comecei a lecionar inglês no IBEU, e para aumentar a renda comecei a fazer traduções. Na verdade, meus primeiros trabalhos foram de revisor, na editora Imago; e comecei a fazer traduções comerciais, tanto do inglês para o português, quanto vice-versa. Minha primeira tradução literária, alguns anos depois, foi para a Nova Fronteira: Voss, romance do australiano Patrick White, que conquistou o Nobel de literatura de1973. Minha insegurança era total. Não sabia que forma de tratamento adotar: o romance era passado no século XIX, e eu não sabia se usava “tu” ou “você”; não sabia quando usar “o senhor”. Não tinha a menor experiência, não tinha ninguém que pudesse consultar — não conhecia nenhum tradutor literário. Por não ter bons dicionários, eu não saía da biblioteca do IBEU; como não sabia nada sobre a Austrália, passei uma tarde inteira lá lendo o imenso verbete referente à Austrália da Enciclopédia Britânica, tomando notas. Foi assim que aprendi a traduzir literatura: na marra. Entreguei a tradução para a editora, o tempo foi passando e acabei me esquecendo dela. Quase dez anos depois é que o livro foi publicado — não me pergunte por quê. A essa altura, eu já estava trabalhando para outras editoras.

......Há mudanças significativas, em termos de profissionalização [de editores e editorial de tradutores], de quando você começou, para o quadro atual? Quais seriam? O aprimoramento teórico da prática tradutória, oferecido pelos cursos universitários, tem peso nessa mudança? 

......Muita coisa aconteceu de meados dos anos 70 para cá, no Brasil e no mundo, no campo da tradução. A Associação Brasileira de Tradutores foi fundada em 1973 — eu estava presente à sessão de fundação, quietinho num canto, enquanto falavam Aurélio Buarque de Holanda, Paulo Rónai e outros nomes importantes que até então eu só conhecia dos livros; da ABRATES nasceu depois o Sindicato dos Tradutores; e, no final dos anos 80, finalmente a profissão de tradutor foi legalmente reconhecida. Os cursos universitários — do qual o mais antigo é o da PUC-Rio, fundado ainda no final dos anos 60 — também foram relevantes, lançando no mercado profissionais que já tinham tido algum embasamento teórico e, mais importante ainda, muita prática tradutória. Mas talvez o mais significativo de tudo seja a mudança de atitude das editoras, que até então davam muito pouco valor ao papel do tradutor. Aos poucos os editores foram se dando conta de que uma má tradução pode matar um livro, que pagar mais para um bom tradutor e um bom revisor resultava num produto final que permaneceria no mercado por muito mais tempo, tendo reedições sucessivas. Enquanto isso, o campo dos estudos da tradução surgiu e cresceu de modo extraordinário nas últimas décadas do século passado. E, é claro, o advento dos microcomputadores e da internet facilitaram imensamente o trabalho de tradução, permitindo mais rapidez e melhor acabamento.

......No campo da tradução, algumas das suas posições teóricas são bastante conhecidas. Culminaram, recentemente, na publicação do livro A tradução literária. Nesse livro você abre algumas frentes que, a meu ver, são bastante interessantes. A revisão, necessária, de certa perspectiva do senso comum sobre o trabalho do tradutor; a relativização de determinados posicionamentos teóricos, principalmente da corrente da desconstrução; da necessidade de avaliação qualitativa das traduções — já indicada, anteriormente, em um ensaio seu sobre as traduções de Donne, realizadas por Paulo Vizioli e Augusto de Campos. Poderia nos falar um pouco mais sobre essas ideias e, naturalmente, como elas são atuadas em sala de aula? Como esse pensamento tem repercutido, uma vez que você, ao que parece, não se incomoda muito de manter uma posição mais conservadora em relação à teorização desconstrucionista, por exemplo?

......A desconstrução se tornou muito influente no Brasil, principalmente nos anos 90, e independentemente do que possa ser dito a seu favor ou contra, no âmbito da filosofia e dos estudos literários, na área de tradução ela foi responsável pela instauração de um divórcio entre a atividade prática da tradução e os estudos teóricos. Levados às últimas consequências, os princípios da desconstrução tornam insustentáveis todos os conceitos que proporcionam os alicerces da empresa tradutória: original, correspondência, fidelidade, transparência, etc. Por mais que concordemos com muito do que é afirmado por esses teóricos, como sua defesa de uma visão antiessencialista da linguagem, as conclusões tiradas por eles vão de encontro às práticas da tradução como “forma de vida”, para usar um conceito de Wittgenstein (um autor, aliás, cuja visão da linguagem, também antiessencialista, me parece bem mais útil para fundamentar o trabalho de tradução). Ora, sei perfeitamente que o significado de um texto não é uma entidade estável, a respeito da qual possa haver um consenso absoluto; que tradução alguma pode reproduzir com exatidão o significado de um texto — e, no caso do texto literário, os seus efeitos de forma —; que não há uma única tradução correta de um dado texto. Mas, para quem tem a obrigação profissional de traduzir um determinado texto, é necessário partir dos pressupostos de que há um determinado significado — e determinados efeitos de forma — que são cruciais para um dado texto; que é possível reproduzir no idioma-meta essas propriedades do texto original com um grau razoável de precisão; e que, dadas duas traduções de um texto, é possível afirmar-se, com base em argumentos razoáveis, fundados em propriedades do original e da tradução, que uma é melhor ou pior que a outra, ou de qualidade comparável a ela. São essas as regras que vigoram nesta forma de vida que é a tradução; sabemos que são apenas regras, mas sem elas não se joga o jogo de traduzir.
......Vou dar um exemplo, que creio ter incluído no livro: imagine-se que, no meio de uma partida de futebol, um jogador segura a bola com as mãos e corre com ela em direção ao gol do time adversário. O árbitro então saca o cartão vermelho, é claro. O jogador, que é seguidor de Derrida, resolve argumentar que as regras do futebol não são verdades transcendentais, criadas por Deus e inscritas nas realidades da bola e do campo; que elas não refletem nenhuma essência eterna, ou seja, podem mudar e mudam de fato, quando a FIFA decide que uma mudança é necessária; que os juízos do árbitro não exprimem verdades absolutas. O árbitro, se for um bom leitor de Wittgenstein, responderá: “Tudo que você afirma é verdade; mas as regras do futebol em vigor proíbem qualquer contato entre as mãos e a bola. Se você pega a bola com a mão no meio do jogo e não é goleiro, não está mais jogando futebol.” Como você vê, minha rejeição das posições desconstrucionistas não se deve a algum conservadorismo da minha parte. Quem traduz se orientando pelos princípios da desconstrução, acreditando que não tem acesso ao sentido do original, o qual é totalmente instável; que o texto que está produzindo não pode corresponder ao sentido do original, e, portanto, pode dele afastar-se o quanto quiser; e que o produto de seu trabalho não é melhor nem pior do que qualquer outro texto que seja produzido por alguém a partir do mesmo original, já que todos os juízos humanos são relativos e falhos — quem age assim não está mais traduzindo, e sim fazendo outra coisa qualquer, que pode até ser interessante, mas — pelos critérios atualmente adotados pela grande maioria das pessoas — tradução não é.

......Se tomarmos a famosa colocação de Harold Bloom acerca da influência, os irmãos Campos te geraram algum tipo de angústia no ato de traduzir? Você costuma dizer que as categorias criadas por eles, como “transcriação”, “transluciferação” etc.; não passam de nomes pomposos para “traduções muito bem feitas” que, na verdade, guardam mais aproximações com os originais do que com a invenção. Como você viu, na época, a discussão entre Bruno Tolentino e Augusto de Campos, acerca da tradução de Hart Crane? Você vê, de algum modo, a necessidade de reavaliar as posições, ainda hegemônicas, do pensamento dos Campos para a tradução?

......O pensamento de Haroldo de Campos, por mais fascinante e influente que seja, na minha opinião, põe ênfase excessiva na autonomização do texto traduzido em relação ao texto original. Ele chega a afirmar que em última análise o tradutor literário quer usurpar o lugar do original. Ora, não vejo como tal coisa poderia se dar. Por melhor que seja a tradução de Homero feita por Haroldo, ela só terá real valor para os leitores lusófonos — e, talvez, também para tradutores de outros idiomas, na medida em que as soluções encontradas por ele podem lhes apontar caminhos interessantes. O fato é que, para a parcela da humanidade que não fala português, o ponto de partida será sempre o conjunto de textos gregos recolhidos sob o nome de Homero; nenhuma tradução pode usurpar tal lugar. O máximo que o tradutor pode pretender realizar é a recriação, na língua-meta, daqueles elementos de sentido e de forma do original que, de acordo com a sua leitura, são os mais importantes, dentre os que podem ser recriados na língua-meta em questão. Querer mais que isso é hybris. Mas a prática tradutória de Haroldo e de Augusto de Campos, felizmente, não vai nesse caminho. Pelo menos com base no que posso avaliar — as traduções que eles fizeram do inglês ou de línguas que leio, com mais ou menos desenvoltura, como o italiano e o francês — o trabalho deles é quase sempre muito respeitoso com o original, tanto no plano do significado quanto no do significante. Quanto à angústia de que fala Bloom, jamais me ocorreu que minhas traduções pudessem ser comparáveis em qualidade, para dar só um exemplo, ao Hopkins de Augusto; para mim, eles são mestres que devem ser emulados, e que — para mim, ao menos — permanecem insuperáveis.
......A controvérsia entre Bruno Tolentino e Augusto de Campos, como todas as controvérsias provocadas por Tolentino, não é coisa que possa ser discutida com seriedade. Ele tinha o gosto por polêmicas, nas quais fazia afirmações muitas vezes estapafúrdias — como a de que Augusto de Campos não conhecia bem o inglês — afirmações essas que, em mais de uma ocasião, contradiziam o que ele havia afirmado pouco antes. Como tradutor, Tolentino está muito aquém do nível de Augusto. Seu comportamento errático e agressivo, associado às posições arquiconservadoras que defendia, acabaram tendo um efeito negativo sobre o reconhecimento de sua obra poética, o que é uma pena. Sua última produção, A imitação do amanhecer, merecia ser mais lida e comentada; a meu ver é um excelente livro.

......Um dos enfoques da sua produção ensaística dá ênfase a uma leitura mais formalista do texto poético. Como exemplos, podemos observar sua leitura sobre o desvio do pentâmetro inglês e o decassílabo português na tradução de poemas; também, mais recentemente, a busca de uma tipologia para o verso livre no Brasil, tomando como partida algumas traduções conhecidas de um mesmo poema de T.S. Eliot [“A Love Song of Alfred J. Prufrock”]. Embora a partida dos textos esteja vinculada à tradução, são bastante interessantes para pensar a dinâmica do verso de maneira mais geral. Como observa essa afirmação? Poderia nos falar um pouco mais sobre a direção dessas pesquisas?

......Sim, estou interessado na questão do verso tal como tem sido utilizado no Brasil, principalmente a partir do modernismo. Um curso recente que dei na PUC-Rio foi justamente sobre isso — a história do verso do modernismo até agora; dei uma versão compacta desse curso, indo só até as neovanguardas dos anos 1950-60, na UFPE, há duas semanas. Nesse primeiro momento, estou enfatizando o chamado verso livre, que, na verdade, é toda uma constelação de formas, e o decassílabo, mas a ideia é ir expandindo, pegando mais poetas e mais formas. Creio que peguei a ideia com Saintsbury, que escreveu um tratado longuíssimo — três volumes alentados — sobre a história do verso inglês, desde os primórdios até a época dele (logo antes da eclosão do modernismo). Acabei de ler o livro recentemente, e estou tentando não cair nos erros de Saintsbury: trabalhar com termos não definidos (ele jamais define “pé”, por exemplo) e valer-se do achismo, fazer afirmativas categóricas sem dar nenhum lastro empírico a elas.

......É notável seu interesse sobre a poesia contemporânea no Brasil. São exemplares os cursos que privilegiam a leitura de poetas não muito conhecidos, como Edimilson de Almeida Pereira ou Rubens Rodrigues Torres Filho; uma extensa leitura da poética de Claudia Roquette-Pinto, para a coleção Ciranda da Poesia; orelhas ou apresentações de livros, como, por exemplo, Lucas Viriato, Marcello Sorrentino, Mariano Marovatto e Iacyr Anderson de Freitas. Qual balanço pode ser feito, se balanço há, sobre a poesia brasileira contemporânea?

......Ainda falta estudar muita coisa, mas já dá para tirar algumas conclusões. A primeira é que, ao contrário do que certos críticos afirmam, estamos vivendo um bom momento na poesia brasileira (para não falar na portuguesa, que também está em ótima fase); há muitos poetas excelentes em atividade. A segunda é uma obviedade: não há mais tendências bem definidas, e nada que possa ser rotulado de “movimento”. Se há experimentação, trata-se principalmente de retrabalhar ou avançar nas conquistas formais do modernismo — ou seja, dialoga-se mais com as vanguardas do início do século do que com as neovanguardas, embora estas também tenham tido um impacto importante, principalmente o concretismo. A terceira é que, embora haja uma pluralidade de versos, a forma mais popular hoje em dia é o que venho chamando, por falta de nome melhor, de novo verso livre: um verso curto, fortemente enjambado, que nas mãos dos melhores poetas é usado para estabelecer um contraponto entre o verso sonoro (que muitas vezes ignora a fronteira entre os versos gráficos) e o verso gráfico (que muitas vezes não tem autonomia sonora).

......Há um poema seu, no Formas do Nada, chamado “Pós” que ensaia, a meu ver, uma resposta — ou início de discussão — com as vanguardas e certo posicionamento sobre a produção poética hoje, além da aberta citação ao “Pós-Tudo” de Augusto de Campos. O terceiro poema, da série “Oficina”, salvo engano, brinca com a função da música do poema em João Cabral de Melo Neto — um soneto mobilizado por terça-rima e fechado em um dístico com uma potente paronomásia. Ricardo Domeneck, já há algum tempo, escreveu sobre certa inconsistência em usar formas históricas do poema, como o soneto. Toma, inclusive, uma famosa série de sonetos seus [“até segunda ordem”], como exemplo, elogioso, do bom uso da forma. Como vê essa afirmação? Qual sua relação com a tradição e a produção poética recente na sua poesia?

......Ao contrário de Ricardo Domeneck, não acredito que o uso do soneto implique uma determinada visão do mundo, fatalmente ultrapassada. Não creio que só o novo verso livre corresponda ao nosso tempo, como nunca acreditei que o uso do sistema harmônico de Bach-Rameau remetesse necessariamente ao passado e todo compositor tivesse que utilizar o método serial, como era moda dizer até mais ou menos a década de 1970. Como diz Antonio Cicero, as vanguardas pensam que estão demolindo formas antigas, mas o que acabam fazendo é revitalizálas e criar novas formas, aumentando o repertório. Stravinsky criou uma forma nova na Sacré du printemps e revitalizou a harmonia tradicional em Pulcinella; Bandeira foi um dos criadores do verso livre entre nós, mas soube também retrabalhar de modo magnífico o octossílabo em “Boi morto”, entre tantas outras formas. É interessante observar que a suposta obsolescência das formas, e mesmo do verso, é uma ideia que nunca foi levada muito a sério pelos poetas de língua inglesa. Stevens, Frost, Eliot, Pound, Yeats e Auden — para citar apenas os seis maiores poetas modernos do idioma — todos trabalharam com formas tradicionais. 
......Se formos estender a lógica de Domeneck — segundo a qual o soneto, por exemplo, está fatalmente ligado à concepção de mundo da época em que surgiu — onde vamos parar? O verso tout court não estaria ligado ao passado, como diziam os concretistas nos anos 50 e 60? Haroldo de Campos pelo visto já não acreditava mais nisso quando publicou um longo poema em terça-rima na última fase de sua carreira. A língua portuguesa não estaria comprometida irremediavelmente com o passado distante, o tempo de sua formação, fazendo-se necessário que criássemos uma “língua brasileira”? Mario de Andrade e outros chegaram perto de afirmar tal coisa nos anos 20, mas depois voltaram atrás. Ou muito me engano ou Domeneck, nas próximas décadas, vai descrever um percurso semelhante... A meu ver, não há como um artista não dialogar com a tradição — repeti-la servilmente e romper com ela de modo radical são duas maneiras extremas de fazê-lo, e nenhuma das duas me atrai. Meu método predileto é tomar formas tradicionais e tensioná-las — no soneto, por exemplo, usando decassílabos com uma pauta acentual incomum e colocando forma e sentido em contraste, como Domeneck observou com sua costumeira argúcia na sua análise do meu poema; ou então alterar a forma, interferindo nas regras do soneto, criando sonetoides e sonetetos. Mas onde não pode haver volta atrás, do meu ponto de vista, é na linguagem: o idioma do poema não pode ser marcado por um vocabulário precioso e uma sintaxe arrevesada. A conquista do coloquial, operada por Bandeira e os modernistas, me parece definitiva.

......Paulo, pra fechar a tampa, os livros sobre versificação no Brasil não são muito numerosos e, em sua maioria, não tratam do verso livre – ao menos, não de modo satisfatório. Podemos esperar uma publicação, nos mesmos termos de A tradução literária? 

......Gostaria muito de reelaborar meus artigos esparsos, acrescentar alguma coisa — talvez muita coisa — e fazer um livro, sim.




Entrevista originalmente publicada na revista Texto Poético, Vol. 14.

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